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    Boca a Boca

    "Boca a Boca" é o podcast do Teatro Viriato em parceria com a Rádio Jornal do Centro. A cada semana, um espaço de partilha com a crónica de Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato, e entrevistas em que a cultura é o ponto de partida.
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    Episodes (39)

    Filhos de Abel | T3 Ep23

    Filhos de Abel | T3 Ep23
    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato, assina a habitual crónica do magazine 'Boca a Boca'. Em destaque, Filhos de Abel”, o exercício final dos alunos do terceiro ano da Escola Superior de Teatro e Cinema que nasceu durante o segundo confinamento este ano.

    Vamos morrer até quando? | T3 Ep22

    Vamos morrer até quando? | T3 Ep22
    Na crónica semanal, Patrícia Portela parte da capa de domingo do jornal Folha de São Paulo (uma folha em branco com a pergunta “Vamos morrer até quando?”, homenagem aos 500 mil mortos por COVID-19 no Brasil) para refletir sobre o papel que cada um de nós tem nas decisões, nas mudanças, no fazer acontecer.

    Dois amores como o primeiro | T3 Ep20

    Dois amores como o primeiro | T3 Ep20

    Encantarmo-nos à primeira vista com um artista e com a sua obra é algo tão raro como nos apaixonarmos ao primeiro olhar. Poder pegar nesse encanto e partilhá-lo com toda a gente é algo mágico que talvez só seja possível na arte, no amor é sabido que tal partilha termina com frequência em desconsolo ou frustração.
    Esta semana temos o prazer, no Teatro Viriato, de partilhar convosco duas paixões que nos acertaram em cheio no coração à primeira vista.
    A primeira paixão é o resultado de um blind date, como o são todos os espetáculos que ainda não estão criados e que são construídos após o nosso sim a um casamento às cegas nos nossos palcos.
    “Cordycepes”, o espetáculo que coproduzimos no âmbito da parceria com a rede 5 sentidos, e que apresentamos já nesta quarta-feira dia 9 de junho, esteve em residência artística no Teatro Viriato em abril passado.
    Assistir ao workshop de Eduardo Molina, João Pedro Leal e Marco Mendonça e ver o entusiasmo e o envolvimento de todos os jovens participantes, fez-nos perceber quão importante é programar projetos que criam a oportunidade de pensarmos em fins como se fossem belos inícios.
    A segunda paixão à primeira vista chama-se Gabriel Ferrandini. Apesar de ser um habitué dos circuitos de jazz viseenses e de ter já tocado várias vezes no Teatro Viriato, e apesar do reconhecido mérito internacional que tem enquanto um dos melhores bateristas de jazz da cena europeia, a nossa paixão à primeira vista pelo que nos vai oferecer este sábado, só aconteceu há uns meses no Festival Lisboa Soa. Foi na Estufa Fria que o vimos pela primeira vez em plena sintonia com o espaço e a torcer a frequência do tempo. Os pássaros acompanharam a viagem sonora enquanto o público nem se atreveu a respirar. Só não tremeu o chão. Foi nesse dia que ouvimos falar de um certo disco, de um certo corte com um percurso musical, de uma nova trajetória artística que já se desenhava por esses dias. Foi nesse momento que percebermos que um novo Ferrandini estava para nascer... e foi nesse mesmo primeiro momento que percebemos que queríamos fazer parte de um novo grande amor.
    Convidámo-lo de imediato a dar o primeiro nó com o nosso público em Viseu. No Teatro Viriato. E ele disse que sim.
    Dia 12 de junho Ferrandini lança mundialmente em Viseu o seu primeiro álbum a solo pela novíssima editora Canto, num concerto que é parte integrante do ciclo de música da Galeria Zé dos Bois, programado pelo nosso já parceiro Sérgio Hydalgo.
    Haverá melhor programa para 9 de junho, vésperas de Camões, do que vir encantar-se com a poesia e sageza das utopias de “Cordycepes”, ou entrar num teatro para dizer sim a “Hair of the Dog” de Gabriel Ferrandini no dia 12 de junho em vésperas de Santo António, o santo casamenteiro?
    Num teatro, há muitos amores como o primeiro.

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Querer saber o fim da história sem querer que acabe | T3 Ep19

    Querer saber o fim da história sem querer que acabe | T3 Ep19

    Durante o espetáculo, e ao som das primeiras notas de “Non, Je ne regrette rien”, de Edit Piaf, uma senhora, a meio da plateia, agitada, pede com licença aos espectadores do seu lado esquerdo para poder sair, logo seguida pelo seu marido.
    Quase em simultâneo, Catarina, a nossa assistente de sala, qual ninfa silenciosa, surge no corredor e vai ao encontro do casal, oferecendo a sua ajuda, julgando que necessitavam de sair para ir ao quarto de banho.
    Num repente, e para que ninguém tivesse dúvidas sobre o que pretendia fazer, a senhora agarra-se, abraçada, ao marido, e iniciam os dois o mais belo pas de deux durante a canção de Piaf, enquanto o espetáculo decorria.
    A Catarina afastou-se e deixou-os dançar. No final da dança, regressaram para os seus lugares, como se nada tivesse acontecido.
    Eu lembrei-me da primeira vez que vi este espetáculo, em Viena, na Áustria. Um casal semelhante saltara para o palco ao som de “Let’s Dance”, de David Bowie e dançara, com muita pinta, ao lado dos bailarinos. Julgando-me muito sábia e inteligente nestas lides do fazer teatral, pensei, ah! Claro! Esta deve ser uma cena sempre combinada E eu que não tinha percebido na altura que este casal que subira para o palco fazia parte do elenco!
    Pois não poderia estar mais errada. Em Viseu, à saída do espetáculo, o casal agradeceu a noite maravilhosa que tinha passado e confessou: há 22 anos casámos neste dia, 29 de maio de 1999, e esta canção foi a canção de abertura do nosso baile de casamento! Não podíamos celebrar este momento sentados! Foi como se estivéssemos de novo no nosso casamento!
    Por vezes pergunto-me: O que torna um espetáculo inesquecível?
    O que faz um filme ser tão especial?
    Será ter grandes atores, belos figurinos? Será um texto cheio de frases memoráveis? Ou será o acidente e a circunstância que envolve a sua apresentação e o momento do seu encontro com a vida do espectador?
    Esta foi uma das perguntas que coloquei a uma audiência de estudantes de teatro.
    Queria fazê-la apenas para ter uma desculpa para contar o que se tinha passado no Teatro Viriato no sábado, durante a estreia da nova versão de “The show must go on”, de Jérôme Bel.
    A minha filha, que ouviu a minha aula, e ouviu esta história respondeu, mais tarde, à minha pergunta inicial:
    Um filme especial é aquele em que queremos saber o final sem nunca querermos que acabe! Como o casamento destes dois espectadores que, esperemos, nunca deixem de vir dançar aos corredores da nossa plateia. Sim, porque a distância não nos permite entrar sem máscara, mas não diz nada sobre dar um pezinho de dança...

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    (How must) the show go on? | T3 Ep18

    (How must) the show go on? | T3 Ep18

     “Charlie bit my finger” ou o Charlie mordeu-me o dedo, foi um dos primeiros vídeos virais, chegando a ser visualizado 880 milhões de vezes. 

    Este vídeo familiar de 2007, mostra um irmão bebé (Charlie, de um ano), ao colo de outro mais velho (Harry, de três anos). Harry coloca insistentemente o dedo na boca de Charlie para logo a seguir se afligir por ele o ter mordido. Esta cena familiar foi captada por uma câmara doméstica, e o vídeo disponibilizado online através da plataforma de Youtube por ser “muito pesado para ser enviado por email para o avô que vivia longe dos netos”. Eis se não quando, e inesperadamente, milhares de famílias o viram e comentaram, tornando-se o nº 1 do Top50 dos vídeos mais vistos de sempre no Youtube. 

    No passado domingo, e pela módica quantia de 761 milhares de dólares, 55 segundos da história da internet foram adquiridos por um comprador anónimo e, por isso, apagados para sempre do Youtube depois de por ali navegarem durante 15 anos. Deixou assim este vídeo de estar acessível, passando a ser considerado, por alguns, como uma obra de arte digital, com o respetivo valor monetário atribuído pelo mercado, e com este novo estatuto, a ser visto por poucos e em exclusividade.  

    Esta é uma história possível para um objeto que inadvertidamente se tornou precioso. 

    Outra história é a que acontece no próximo sábado, dia 29 de maio, no nosso palco do Teatro Viriato. Às 21h estreamos a versão portuguesa do “The show must go on”, peça icónica de Jérôme Bel, um dos mais rebeldes e astutos artistas do século XX e XXI, conhecido por aliar humor e conceptualização nas suas obras. 

    O coreógrafo francês, que se recusa atualmente a viajar de avião por causa das alterações climáticas, aceitou esta proposta para celebrar os vinte anos desta obra itinerando-a por Portugal, em Viseu, Lisboa e Porto, com um elenco inteiramente residente em Portugal. No próximo sábado poderemos assistir a esta peça que mudou a história da dança pela módica quantia de um bilhete de teatro. Uma peça que percorreu o mundo e que, esperemos, sobreviverá às restrições da geografia e do tempo para poder continuar a fascinar espectadores por todo o lado e por muito tempo.  

    Se me dessem a escolher entre a arte que se renova e se replica, mantendo-se singular em cada apresentação, e aquela que se vende por um milhão mas que se torna inacessível aos demais, eu não hesitaria. Ter a oportunidade de ver esta peça na nossa cidade é um luxo que não é avaliável nem em dinheiro nem em crachás para o nosso currículo (e muito menos numa coleção de arte privada). Basta-nos agradecer com a nossa presença e o nosso aplauso.  

    Apareçam! É garantido o fascínio e o prazer de poder assistir ao vivo a uma obra de arte!

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Uma colher de chá de mel | T3 Ep17

    Uma colher de chá de mel | T3 Ep17

    Reabriram os teatros, os cafés, os restaurantes, anunciou-se a época balnear, caíram as restrições para as viagens e o teletrabalho vai deixar de ser obrigatório. 

    A par e passo regressamos a uma certa normalidade, dizem, mas que normalidade? A de tirar férias num país mais barato para fugirmos à porcaria de vida ou de clima que temos em casa, como provavelmente o confirmarão muitos dos 20 000 britânicos que aterraram esta semana em Faro?

    A normalidade de bombardear indiscriminadamente uma faixa de 362km2 onde vivem 12 milhões de habitantes que não podem fugir para lado nenhum?

    A normalidade de poder fechar os olhos e mantermo-nos quietinhos enquanto continuamos a falar em nome da Humanidade, em nome de um Holocausto, em nome de uma Europa moral e filosófica?

    A normalidade de poder comprar um bilhete para um espetáculo de teatro a qualquer hora e não o fazer, porque não se tem tempo, porque não se tem vontade, porque fica para a próxima, porque se esqueceu, porque se queria tanto ir e não se conseguiu?

    Esta semana brindei, por cortesia, com um cálice do Porto na companhia do livreiro da Unicepe, o grande combatente antifascista Rui Vaz Pinto. Enquanto arrumávamos as mesas de um lançamento de um livro agora terminado, Vaz Pinto comentou-me: Não vai deixar esta gota de cálice no copo, pois não? Sabe que uma videira vai buscar água a 15 metros de profundidade para se alimentar, não sabe? É um crime deitar vinho fora. E eu pensei. Sim, eu sei. Sei que uma colher de chá de mel é o equivalente a uma vida inteira de trabalho de uma abelha. Sei que para ter uma aliança de ouro num dedo, pelo menos 9 homens tiveram de escavar duas toneladas de pedra, sei que para alimentar gado bovino temos de plantar quilómetros e quilómetros de soja em campos que poderiam ser verdes ou plantados com outras culturas. Sei que cada peça que estreia tem por trás anos de treino, meses de ensaios, muito suor e muita lágrima.

    O que sentimos quando sentimos falta da “normalidade”? O que queremos quando a queremos de volta?


    Será que queremos muito regressar a uma dita normalidade só para a termos? Para sermos detentores dessa normalidade? Usufruirmos dela como muito bem a entendermos. Incluindo não a usando, deitando-a fora? Desperdiçando-a, não saindo de casa, passando noites a ver filmes ou a trocar mensagens em vez de irmos ao teatro ou ao cinema, deitando comida fora e reservando nova online para que nos seja trazida a casa embrulhada em múltiplos papeis de alumínio, caixas de plástico, sacos de papel?

    Podereis argumentar contra esta minha provocação e dizer-me: 

    - Sim, mas nada do que passa nesse teatro me interessa, nada nesse restaurante me apetece comer, nada nesse país é válido, que não merece ser defendido...

    E eu engulo em seco e tento aceitar o argumento e respondo-lhe:

    - Diga-me então o que gostaria de ver? Como gostaria de não ver desperdiçada a arte que tão bem sabemos fazer, os encontros que tão bem nos fazem à alma, os rituais artísticos, religiosos, culturais, tradicionais, familiares?

    Quando nos vemos à porta deste nosso teatro? Ou noutro lugar qualquer indispensável onde ainda não fomos juntos?

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Ser um só | T3 Ep16

    Ser um só | T3 Ep16

    Gostávamos que em Viseu todos sentissem que poderiam ir ao Teatro sem olhar o programa.

    Gostávamos que o Teatro fosse um lugar do quotidiano, como um café, como um restaurante de vez em quando, ou uma cantina, como uma mercearia onde se vai regularmente só para comprar aquele ingrediente que faz falta ao repasto do dia.

    Gostávamos que o espectador comprasse um bilhete como quem compra um jornal para saber o que se passa, como quem faz zapping numa televisão, à procura daquele filme ou daquele documentário que ainda não conhece e que lhe vai abrir portas e janelas para mundos sobre os quais nunca pensou e descobrindo que gostaria de, sobre eles, pensar.

    Gostávamos que o Teatro tivesse horas certas… quem sabe conversas e leituras todas as quartas às 19H30, como hoje acontece com a Minha História da Dança de Sónia Baptista, quem sabe espetáculos e concertos todas as sextas e sábados, sempre às 21h, quem sabe debates, conferências, e outros encontros nas tardes de sábado, às 16h, como acontece este fim de semana com o Laboratório de Criação Teatral BB2021 do Fraga… e gostávamos que nesses dias, assim como quem sai para beber um café, dar um passeio ou sai para ver algo que ainda não sabe o que é mas que, tem a certeza, só poderá ser interessante.

    Gostávamos que o Teatro fosse uma extensão do nosso quotidiano, uma hora marcada no nosso calendário semanal.

    Gostávamos que este hábito de ir ao teatro porque sim, como quem pede uma torrada ao Sr. Zé no café Teatro, como quem compra bolachas de água e sal para ter sempre em casa, como quem não passa sem um queijinho ou um pão de lenha que só pode comprar naquela padaria que só está aberta ao fim de semana, se prolongasse por muitos anos.  

    Gostávamos de perceber, e de confirmar, que passados esses anos, todos nós teríamos mais amigos e companheiros, mais projetos e mais ideias sobre o mundo, mais multiplicidade e mais possibilidades de sermos tantas outras coisas. E com isso, transformarmos a cidade que nos irá transformando até não sabermos, um dia, onde começa a nossa casa, o nosso jardim e termina o teatro, onde se inicia o jornal e termina o espetáculo, onde começa a nossa vida e a vida dos outros.

    Nesse dia teríamos cumprido o nosso objetivo de ser um lugar de encontro, de pensamento, de partilha e de múltiplos lugares.

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    B de Benjamin e Fachada | T3 Ep15

    B de Benjamin e Fachada | T3 Ep15

    Após uma semana atabalhoada e cheia de queixumes vários, chegava eu cedo ao teatro, preparada para mais um dia de obstáculos, quando uma surpresa me iluminou o dia. Na sexta-feira passada, quando cheguei ao teatro, aguardavam-me na entrada dois embrulhos de papel pardo, atados com um cordel e com o meu nome e morada escritos a caneta de tinta permanente. Abri os dois pacotes como quem abre dois presentes. O mestre e sábio João Barrento enviara-me as suas duas últimas traduções do mais urgente dos pensadores: Walter Benjamin. Ali estavam, à minha frente, as “Passagens de Paris” e as “Imagens de pensamento” que eu trocara por um livro meu que também enviara. Lá dentro uma nota dizia:

    “O bom escritor não diz mais do que aquilo que pensa. E muita coisa depende disso. É que o dizer não é apenas a expressão mas a realização do pensamento”.

    Em conversa com o Alberto, na entrada, comentei. O Benjamin pode ler-se abrindo qualquer página ao calhas. O Benjamin é o autor da realização do pensamento e da reprodução da imagem. O Benjamin planeava fugir para os Estados Unidos em 1940 partindo de lisboa, na altura uma cidade neutra. Na fronteira franco-espanhola, a guarda espanhola impediu-o de prosseguir o seu caminho informando-o de que seria deportado no dia seguinte e entregue aos nazis. Sentindo-se derrotado, Benjamin suicidou-se com overdose de morfina num quarto de hotel. No dia seguinte as fronteiras abriram e todos os seus companheiros chegaram ao seu destino.

    Antes que eu dissesse mais alguma coisa, o Alberto respondeu-me: Já viste a tua sorte? As fronteiras já abriram hoje, as esplanadas e os teatros também, escapaste desta, Patrícia. Sorrimos os dois como só pode sorrir quem é o primeiro a chegar e o último a sair de um lugar sem fronteiras. 

    Esta semana abrimos o teatro ao público e já temos casa quase cheia: cheia de mulheres corajosas e guerreiras na quarta, vindas de Barcelos e do Brasil; cheia de rapazes e de raposas já no sábado,  a provar que vale sempre a pena aguentar mais um dia, mais uma decisão, mais uma alteração, só para poder receber um Benjamin,  poder abraçar uma Sónia Barbosa, poder dar a conhecer uma artista como a Janaina Leite, poder conversar num “Boca Livre” com um Rui Catalão ou poder terminar este sábado com um concerto inesquecível de um magnífico e magnânime B Fachada. 

    Não duvido de um aplauso de pé!


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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Estado vegetal | T3 Ep14

    Estado vegetal | T3 Ep14

    Porque têm de ser os humanos as personagens principais de um espetáculo de teatro? 

    Porque não escolher criaturas polifónicas? 

    E se pudéssemos entender as línguas das plantas e perceber o que nos têm a dizer? 

    O que nos poderiam ensinar sobre outras formas de pensar, sobre outras formas de ser que não esta, a nossa?

    Porque aceitamos com tanta facilidade que uma aplicação digital saiba tanto sobre os nossos gostos as nossas ansiedades e não nos passa pela cabeça ter vergonha de algumas ações que praticamos na presença de uma planta?

    Porque não semear o nosso herbário intelectual num teatro botânico e com um elenco vegetal? Porque não procurar uma proposta performativa que questione os limites da nossa perceção de um mundo que, além de nós, compreende outros seres animais, minerais e vegetais?

    Porque não aprender a falar a língua das plantas? Perceber o que lhes agrada, o que as repugna, o que fariam diferente? 

    Porque não reativar aquele que é o diálogo mais primordial, o do ser humano com a natureza, recuando até ao momento em que todos nos entendíamos e não éramos fábulas?

    De certa maneira é esta a proposta de Manuela Infante, encenadora e autora de «Estado Vegetal», um espetáculo construído a partir da obra do filósofo Michael Marder e do neurobiologista Stefano Mancuso. Escolhemos este espetáculo para abrir a nossa colaboração com o Festival de Teatro Internacional de Expressão Ibérica. Por ora apresentado em formato digital, «Estado Vegetal» é um espetáculo que se prolonga para lá da sua apresentação, quando saímos de casa, e nos deslocamos até ao café, até ao jardim ou até à vizinha da frente, reparando em cada elemento não antropomórfico do caminho. 

    Se não somos o centro do universo, nem mesmo da nossa rua, porque desejamos continuar a ocupar o centro de uma sala de espetáculos? Se ainda há tanto que nos escapa, porque nos contentamos com o pouco que julgamos conhecer?

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    De Abril a Ernesto | T3 Ep13

    De Abril a Ernesto | T3 Ep13

    Há dias em que não há tempo para escrever. Mas são dias como estes que dão um sentido à nossa escrita e à nossa vida diária num teatro.
    Este dia começou há uns largos meses num certo encontro. Um encontro de druidas entre o Museu Grão Vasco, o Agrupamento de Escolas de Moimenta da Beira e o Teatro Viriato. Falámos de pintura de género, de arte nas escolas, de construção de imagens. Congeminámos um plano: e se começássemos este projeto teatral onde se misturam artistas, professores e alunos com uma visita guiada a uma exposição temporária ainda por terminar e uma visita a um teatro ainda fechado, mas já com ensaios para uma estreia? Queríamos que os alunos do agrupamento de Moimenta da Beira se encantassem com os bastidores dos museus e dos teatros. Que descobrissem o fascínio da criação através do processo criativo. Queríamos que os nossos museus e os nossos teatros fossem lugares domésticos para estes alunos durante os próximos meses, que saíssem deste projeto a querer adotar estes lugares como se fossem as suas bibliotecas, as suas salas de estar, os seus recreios. Terminámos este encontro, a meio de uma primeira e feroz quarentena a dizer: mas isto vai mesmo acontecer, não vai? Vamos mesmo fazer isto acontecer?
    Este dia também começou no aniversário da arte a 17 de janeiro, quando homenageámos Ernesto de Sousa, o padrinho da nossa programação para 2021. Este domingo, 18 de abril, este artista multidisciplinar inclassificável faria 100 anos. Ao escolhermos Ernesto como nosso padrinho, queríamos estar à altura da sua obra, e queríamos fazer-lhe a promessa de apresentar uma programação que estivesse à altura do seu espírito pluridisciplinar.
    Este dia também começou no sábado passado, com a abertura do nosso ciclo de música a Galeria Zé dos Bois, escolhido a dedo e pela mão de Sérgio Hydalgo. Ricardo Toscano estreou o seu double Trio e com a sua música aqueceu o Teatro, preparando-o para a sua abertura esta segunda-feira, dia 19 de abril, dia em que podemos reabrir o nosso espaço ao público. 
    Este dia de reabertura só poderia ser este dia que começou a ser cozinhado por tantos e há tanto tempo. Abrimos as portas do teatro à mais nobre das atividades públicas: Uma visita guiada aos bastidores do teatro oferecida por toda a sua equipa aos alunos do agrupamento de escolas de Moimenta da Beira.  Com direito a assistirem à montagem do cenário do espetáculo em residência “Ainda estou aqui” de Tiago Lima, vencedor da 3º edição da Bolsa Amélia Rey Colaço. E uma outra visita à exposição temporária sobre a identidade portuguesa ainda em construção no Museu Grão Vasco.  E ainda uma pausa no Adro da Sé onde jogámos e conversámos juntos, guiados por Nuno Veiga, artista associado do Teatro Viriato, numa pequena sessão com direito à história múltipla da Sé de Viseu contemplando os seus vários séculos de construção. Ainda a semana vai a meio, e já sabemos que teremos direito a assistir aos ensaios de uma banda de Tiago Lima que, finalmente, poderá ver a luz do dia durante os próximos ensaios, e ainda poderemos celebrar a revolução este fim de semana, descendo a avenida, relembrando como, e a partir de Viseu, a descemos o ano passado através do olhar e dos telefonemas em direto de Joana Craveiro, nossa artista residente. Ah, e isto sem esquecer o concerto dos professores do Conservatório de música de Viseu já este sábado no Festival Internacional de Música da Primavera. Tudo isto numa semana e penso: Haverá melhor semana e maneira de reabrir um teatro do que desta maneira? Querido mestre Ernesto de Sousa, queridos parceiros do Museu Grão Vasco e de Moimenta da Beira, haverá melhor do que misturar séculos, técnicas, estilos, casas, idades e vontades para reabrir um teatro e celebrar a multiplicidade do que ainda podemos ser? 

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Pensar a mais de dois | T3 Ep12

    Pensar a mais de dois | T3 Ep12

    Pensar a mais de dois


    Pensar na sustentabilidade ambiental, política, individual, afetiva, sexual e ética do nosso quotidiano. Ensaiar discursos de resistência e resiliência na cidade, em casa, no trabalho. Questionar as fronteiras físicas e mentais entre países, entre épocas, entre géneros, entre classes.

    Alterar, com a presença do corpo, a norma, a esfera da intimidade, as relações de poder.

    Existir. De forma plural e sempre questionante  através de múltiplas linguagens. 

    Criar ligações. Construir pontes. Lançar as cordas e os dados.  Desenhar novos mapas, ler e descobrir novas constelações.

    Pensar em novas formas de habitar o planeta e de ocupar o espaço social e político.

    Pensar em formas de reconciliação ou de confronto com os tempos em que vivemos.

    Pensar de outras formas. Formar outros pensamentos. E fazê-los a partir de casa, do palco, da rua e em plataformas digitais, escritas, presenciais, locais, à distância, de olhos fechados ou simplesmente à escuta, aproximando-nos de pares e de estranhos.

    Focar os holofotes na margem, na outra margem, no outro lado do atlântico, ou do outro lado de cá desta fronteira única e peninsular. 

    Celebramos tudo isto esta semana e anunciamos a parceria do Teatro Viriato com o FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica – que se iniciará já no mês de maio. O Teatro Viriato junta-se à 44ª edição de um dos festivais internacionais mais antigos no país e mantém próxima e viva a cena internacional num momento em que a deslocação além-fronteiras está restringida. O Teatro Viriato junta-se com a sua equipa, com o seu palco, com o seu conhecimento e com as suas propostas para que a base de aterragem das muitas realidades ibéricas e transatlânticas seja mais alargada, e a possibilidade de contacto mais extensa, mais diversa e a chegar a muito mais público, lembrando-nos a todos que o mundo não é do tamanho das nossas quatro paredes caseiras, mesmo quando assim nos parece, nem tem as mesmas cores ou condições em todos os quatro cantos do planeta. 

    Num momento em que se vive com ansiedade a possibilidade de um reencontro numa sala de teatro, manter só a luz e o debate acesos e a porta aberta, ou outras as formas de pensar e recriar o quotidiano, não só as nossas, mas, e sobretudo, as que desconhecemos,  parece-nos necessário, urgente e prioritário.

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Todos múltiplos de 1 | T3 Ep11

    Todos múltiplos de 1 | T3 Ep11

    No trimestre que passou, vivemos algumas aflições, muitas incertezas, recolhemo-nos de novo às nossas casas, assistimos ao fecho de escolas e de fronteiras, cuidámos dos nossos entes queridos, vimos a nossa cidade ser abalada por tempestades e pela perda de alguns dos nossos. No Teatro Viriato ensaiámos novas obras, reordenámos a programação, testámos novos formatos, reforçámos as nossas alianças e parcerias, amparámo-nos perante a permanente surpresa de mais um adiamento, de mais uma doença, de mais uma trágica notícia. 

    Nem sempre nos pareceu possível aguentar. 

    Nem sempre nos pareceu que tudo isto fizesse sentido. 

    Mas olhando agora para o programa que desenhámos e que agora vos oferecemos, vemos nele espelhado os quatro cantos do planeta, os três tempos de uma história comum (passada, presente, futura), os percursos biográficos e civilizacionais que nos unem e nos separam, a presença daqueles que já partiram e que nos acompanharam nesta construção, e, sobretudo, reconhecemos a vontade, a coragem e o esforço de tantos e tão dedicados artistas que não cessam de nos fascinar e de contar as nossas Histórias. 

    A partir de abril fazemos questão de recomeçar de novo o ano. A partir de abril poderemos visitar a “Rural Art Residency” na Arménia pela mão da sua curadora e artista plástica Lilit Stepanyan e de Pedro Sousa Loureiro. 

    Poderemos cheirar as primeiras frésias da estação com o “Festival Internacional de Música da Primavera” (que este ano inaugura ainda a nossa parceria na área da música com Sérgio Hydalgo, programador da Galeria Zé dos Bois, um casamento celebrado no Teatro Viriato que se deseja longo e feliz). Poderemos pendurar o nosso ramo de espigas na porta do quarto que partilhamos agora com o “Festival Internacional de Teatro de expressão Ibérica – FITEI”, o nosso novo companheiro de viagens transatlânticas. Poderemos abrir o verão com um passeio pelos múltiplos “Jardins Efémeros” na companhia de Chris Watson, ou André Gonçalves e passear ao lado dos Filhos de Abel, o projecto final dos alunos do 3º ano de interpretação da Escola Superior de Teatro e Cinema em residência no Teatro Viriato e a estrear pelas ruas de Viseu. 

    Visitaremos momentos únicos do passado com a reposição de “The Show Must Go on”, de Jérôme Bel, vinte anos após a sua estreia inesquecível; despedir-nos-emos deste mundo para podermos imaginar outros futuros com João Pedro Leal, Eduardo Molina e Marco Mendonça; Espreitaremos tudo aquilo que ainda não somos e vamos por certo ser com as apresentações finais da Escola de Dança Lugar Presente e o “Projeto Jovens Bailarinos”, da Companhia Paulo Ribeiro. Mergulharemos no nosso corpo, relendo-o em  “A Minha História da Dança”, pela voz e memória de Sónia Baptista, abraçando-o no seu virtuosismo para o melhor e para o pior (“Pour le Meilleur et  Pour le Pire”), na composição amorosa de Kati Pikkarainen e Victor Cathala para o Cirque Aitall; tentando decifrar o seu desejo de velocidade e implosão em “Cabraqimera” de Catarina Miranda.

    Tentaremos compreender o lugar do pai na civilização ocidental através das memórias pessoais de Romeu Runa e Beatriz Batarda na encenação “Perfil Perdido”, de Marco Martins, ou o lugar que não deveria ser só da mãe em “Stabat Mater”, de Janaína Leite. Entraremos por múltiplas cidades habitadas por várias companhias como o Teatro da Cidade, os Possessos ou o AuÉÉÉu Teatro.

    Recordaremos o 25 de abril e ensaiaremos a luta com o álbum de 2020 “Rapazes e Raposas, de B Fachada e ouviremos ainda, e pela primeiríssima vez, o disco “Hair of the dog”, de Gabriel Ferrandini.  

    Do Chile à Arménia, passando por cidades imaginárias, do passado ou que queremos bem presentes, o Teatro Viriato conta ser o lugar da diversidade que qualquer vida deve ser e ter. Nunca esquecendo a singularidade de cada um e que se confirma na multiplicidade de vozes, de corpos, de caras, de estados, de humores, de desejos e de possibilidades que só se revelarão no momento do encontro entre o público e a arte que queremos oferecer. Contamos consigo para escrevermos juntos os próximos capítulos do diário de um 2021 que teima em recomeçar de novo em abril, um ano que inicia e onde cabe uma década.


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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Do que sentimos mesmo falta? | T3 Ep10

    Do que sentimos mesmo falta? | T3 Ep10

    Do que sentimos mesmo falta?


    Uma vez ouvi um filho perguntar a um pai:
       - Quando é que isto tudo melhora, pai?

    E o pai, sábio, respondeu-lhe:
       - Quanto te habituares a isto.


    Estamos num momento em que é fácil desanimar.

    Ainda não estamos suficientemente longe para nos esquecermos de como tudo se passou, mas também não estamos ainda tão perto do fim para conseguirmos aguentar esta hercúlea tarefa de caminhar sobre uma prolongada dúvida. Perguntamo-nos cada vez mais sobre o que de facto faz sentido e para onde caminhamos. Perguntamo-nos: O que não vai regressar? O que mudará para sempre? Do que estamos dispostos a abdicar? Do que sentimos verdadeiramente falta? Será de ir ao cinema? De ir ao teatro? Ficar na rua até às tantas? Ir a um restaurante comemorar um aniversário? Será de beber um copo com os amigos? Ir às suas casas? Conhecer gente nova? Abraçar a família? Passear simplesmente nas ruas, encontrando outros, falando com outros, sem pressão de horário nem recolhimento noturno? Teremos saudades de sentir a ilusão de que controlamos o destino? Que temos na mão a sorte?  Quereremos tudo de volta ou há coisas que nos fazem mais falta do que outras?

    Estamos em pleno mar alto. Não há terra à vista. Tentamos fazer o exercício de organizar o futuro próximo. Fazer planos... 

    • Quando terminar esta quarentena, vou visitar o meu tio. 
    • Quando terminar este suplício, vou andar pela praia horas a fio. Quando terminar este ano vou … vou… e vou…

    Fico em casa a ouvir um concerto único de um quarteto de cordas. Os músicos estão sozinhos, fechados num teatro, frente a uma plateia vazia, mas com uma garra, como se ali estivesse uma multidão. E só para que eu veja do outro lado da linha, em casa, no meu ecrã de televisão ou de computador. E penso: Caramba! E se esta pandemia nos tivesse calhado num tempo sem internet? E se ainda vêm outras onde não há possível comunicação? Sinto-me afortunada! Há quem não desista! Há quem continue a tocar todos os dias, a treinar todos os dias, a compor todos os dias, a desenhar todos os dias; há quem nos relembre que o ser humano sempre inventou a roda, vezes sem conta, e não será agora que não vai inventar a maneira mais delicada e airosa de se manter vivo, criativo e generoso para com os seus. Pego no programa do Festival Internacional de Música da Primavera de Viseu, organizado pelo Conservatório Regional de Música de Viseu Dr. José Azeredo Perdigão, e vejo a Diana Botelho, o Manuel Araújo, a Orquestra Filarmonia das Beiras, a estreia do Ricardo Toscano Double Trio. Alguém mantém o mundo vivo e a girar, alguém mantém a sopa primordial aquecida para que se continue a criar, a provocar a mudança, a encher de música o ar e a teimar em fazer-se presente, para não nos esquecermos do que nos faz mesmo falta.

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Em boa companhia | T3 Ep9

    Em boa companhia | T3 Ep9

    O meu lugar preferido no Teatro Viriato é a teia. É o lugar onde estou e não estou no teatro. Onde estou e não estou no palco. É daqui que vejo o Fraga, o encenador que agora prepara a estreia da peça “Senso” a partir das peças didáticas de Bertolt Brecht, a falar com a sua equipa antes de começar o ensaio geral. É daqui que o ouço a agradecer a cada um dos seus atores, a cada um dos membros da equipa do Teatro Viriato, a cada um dos dias que aqui esteve este mês a construir uma obra, lado a lado, com uma equipa que se admira, que se respeita e que se conhece muito bem. Grande parte do elenco é de Viseu ou dos arredores, e começou a fazer Teatro ao lado de ou por causa de Fraga. 

    Tem sido um enorme privilégio, enquanto recém-chegada a Viseu, receber este projeto por um tempo prolongado. Criámos rotinas, trocámos textos e conversas, histórias de outros tempos. Com eles viajei por muitas cidades de Viseu, algumas mais antigas, outras recentes, e foi surpreendente reconhecer alguns caminhos comuns (ainda que separados pela geografia) assim como perceber que a história da atividade performativa nesta cidade muito deve à loucura, ao empenho, à dedicação e à paixão deste encenador que entre aulas, espetáculos e outras aventuras, apoiou muitos dos artistas e autores que a cidade tem.

    Nestes últimos três meses, de janeiro a março de 2021, um período em que não nos foi possível abrir as portas ao público, acolhemos mais de 50. 

    Apesar da distância, das restrições e das múltiplas dificuldades que os dias foram apresentando acolhemos o projeto “A fragilidade de estarmos juntos”, “Aleksei ou a Fé” e agora “SENSO”, três produções inteiramente produzidas em Viseu com um elenco maioritariamente da região.

    Estes meses ficaram na minha memória, enquanto diretora artística deste teatro, como o início de uma experiência num teatro cheio de histórias e memórias que se fundem com a história dos artistas e da sua comunidade. Um tempo que vivi sempre acompanhada daqueles que me adotaram e me abriram as portas para que pudesse entrar e fazer o meu caminho.

    Tal como diz Guilherme Gomes, ator nesta peça que estreamos no Dia Mundial do Teatro (e encenador e ator do Teatro da Cidade), talvez não seja por acaso que, a um grupo de atores, não se chama nem banda, nem empresa, mas “companhia”. É assim, o Teatro Viriato. Um lugar onde se vivem os dias, mesmo os mais difíceis, oferecendo, partilhando espetáculos de múltiplos formatos, sempre em boa companhia.

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    A história repete-se | T3 Ep8

    A história repete-se | T3 Ep8

    A história repete-se 

    Muitas vezes me despeço de um jantar, de um encontro, de uma compra numa loja ou de um café dizendo “saúde”. Um hábito que herdei da minha avó Betinha, e que passei a usar com maior veemência e intensidade com o início da pandemia. Quando eu era criança, a minha avó explicava-me vezes sem conta que se deveria dizer sempre “Santinho!” ou “saúde!” quando alguém espirrava, (e a minha avó ainda beijava o terço que trazia ao pescoço) pois era com um espirro que muitas mortes começavam. Eu juntava este hábito da minha avó a muitas outros que me ensinara, como a de não deixar nunca uma tesoura aberta sobre a mesa (porque corta as amizades), ou os croquetes feitos de tudo que sempre comíamos à sexta-feira porque à sexta feira é dia de restos. A minha avó sempre nos educara para um mundo de privações, cheio de mágoas e de tragédias que eu nem sempre aceitava ou compreendia.

    Esta semana, em conversa com familiares, descobri que tanto a avó materna do meu pai (ou seja, a mãe desta minha avó Betinha) como a avó materna da minha mãe, morreram de gripe espanhola, deixando as filhas órfãs, aos dez e aos dezoito anos de idade. Esta nunca foi uma história que tivesse circulado na família, e mesmo os meus pais não a conheciam. Ninguém se lembrara, até à data, de mencionar a causa da morte destes familiares que nenhum de nós conhecera. 
    Enquanto ouvia a conversa, pensava que nunca tinha pensado sobre a infância da minha avó. Imaginei-a de repente a crescer sozinha, a cuidar das irmãs mais novas, a ir para Lisboa trabalhar, a casar só aos trinta, algo raro na sua geração, a fazer sempre croquetes à sexta-feira para juntar os restos dos outros dias e assim fazer uma refeição para todos. De repente, vi uma outra mulher. Uma outra vida que a tinha levado a ser a avó que conheci. A avó que dizia Santinho e beijava o terço de cada vez que me ouvia espirrar. Tivesse eu feito mais perguntas quando era mais jovem, e talvez a sua história me tivesse ensinado a sobreviver agora à minha. 

    Passamos por estes dias ouvindo expressões como “sem precedentes” ou “como nunca se tinha visto”, ou ainda “um acontecimento inacreditável, incomportável, inusitado” e afinal estamos simplesmente paralisados frente à nossa história única e recente, sem nunca nos atrevermos a deambular pelo passado de outras histórias, por vezes tão próximas e tão similares. A história repete-se mostrando que apesar de únicos nas nossas semelhanças, somos todos iguais e vulneráveis perante uma experiência que nos parece tão diferente de tudo o que até agora nos aconteceu; e que afinal, já se passou com tantos dos que nos antecederam. Deixei-me ficar a ouvir aquela conversa enquanto imaginava familiares distantes a combater com bravura tantas doenças e catástrofes. Queria que aquela conversa nunca mais terminasse, que se repetisse, vezes em conta, que fosse encenada e recontada. Por um momento tive a certeza de que a força daquelas histórias de vida, à conta de serem contadas e recontadas, me trariam uma solução para as minhas dúvidas presentes.

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

    Ataques tipográficos | T3 Ep7

    Ataques tipográficos | T3 Ep7

    Ataques tipográficos

    O Teatro assenta na crença ingénua na palavra. Um homem entra em cena e afirma que é o rei da Dinamarca e todos acordamos que estamos a ver mais uma versão de Hamlet. Além dos cenários, da iluminação, do ambiente sonoro ou dos efeitos especiais, são as palavras que nos fazem viajar até lugares, épocas e dramas distintos.

    Ao que parece, o mesmo acontece a uma inteligência artificial.

    As ferramentas a utilizar são as mais simples: uma caneta e um papel. Segundo investigadores e programadores, basta escrever, numa pequena folha de papel, por exemplo, “iPod”, e colocar essa nota por cima da imagem de uma maçã, para que o sistema de reconhecimento de objetos de um computador deduza estar perante um “iPod” e não uma ”maçã”. Ou, se a fotografia de um cão tiver uma nota cheia de cifrões desenhados à mão, passa a ser reconhecida como um porquinho-mealheiro.

    A estes desencontros entre a leitura do sistema do computador e a imagem chamamos “ataques tipográficos”.

    Clip é um sistema de visualização capaz de aprender conceitos abstratos a partir da sua representação. Uma espécie de rede neurológica multimodal que, ao cruzar a múltipla informação que recolhe, consegue, por exemplo, decifrar a imagem de um homem-aranha. Um neurónio reconhece a aranha, outro, o homem, e outro ainda, o traço de um desenho animado. Esta rede neurológica artificial está tão desenvolvida que pode reconhecer ainda uma estação do ano ou uma emoção, e não apenas objetos. Curiosamente, esta rede, cada vez mais exata, tornou-se tão eficaz na leitura de imagens, mesmos as desenhadas, que confunde com facilidade um conceito escrito e uma imagem fotográfica de algo real. Como consequência, conseguimos induzir qualquer sistema artificial em erro com um simples recado escrito à mão. 

    Tal como acontece com um espectador, que, ao ouvir as palavras criteriosamente escolhidas por um dramaturgo serem proferidas pela boca de um ator, se deixa transportar para um outro lugar e uma outra vida. A diferença é que o espectador sabe distinguir as duas verdades. O mesmo não se pode dizer de uma inteligência artificial, que muito ganharia em participar no workshop de Jacinto Lucas Pires, no próximo fim de semana. Poderia descobrir a tensão entre uma palavra dita e uma palavra escrita, e perceber o mecanismo e a relação de afeto e cumplicidade entre uma palavra e um corpo e saber como habitar o hiato entre aquilo que é misterioso (porque não é um iPod nem só uma maçã), e aquilo que sempre será “espantosamente claro”, sobretudo quando escrito por um dramaturgo como o que convidamos esta semana para lecionar no Teatro Viriato.

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    Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

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